sábado, 6 de junho de 2009

Apontamento sobre o Gafanhão e a areia – 4

E então surgiu o inevitável: uma noite de vendaval cobriu de areia as culturas, erguendo dunas sobre as sementes enterradas.
Foi preciso recomeçar pacientemente. Foi necessário enterrar moliço muito ao largo, tentando prender com húmus a areia movediça que o vento espalhava ao acaso.
E o Gafanhão assim fez. Foi tratando com adubo hectares de solo, para colher apenas nas poucas leiras que lhe rodeavam a casa.
Tudo isto, porém, ia levando anos sobre anos, em que a areia e o vento pareciam apostados em destruir caprichosamente o trabalho do homem. Não fora o Gafanhão quem é, teimoso e paciente como herói lendário e teria desistido de domar aquela terra maldita que a si própria se cobria, arrasando numa hora muitos meses de esforço inaudito.
Uma outra geração sucedeu, porém, à primeira e a luta continuou. Multiplicaram-se os braços, salpicou-se de casas todo o areal da beira-ria e os avós ensinavam aos netos, dobrados todos sobre as enxadas, que era preciso lutar e vencer, sob pena de morrer pela fome.
Depois da invasão das culturas pela avalanche das dunas, nunca os mais novos viam que os velhos chorassem, de braços cruzados, rogando pragas ao destino. Viam sim, crescer na água o número de barcos e na terra o de enxadas que recomeçavam pela centésima vez o trabalho inútil de uma sementeira que não chegava a dar fruto.
Teimava a areia em bailar, cobrindo cinicamente de grãos estéreis o chão estrumado com algas. E o Gafanhão teimava em vencê-la, enterrando-lhe mais e mais lavouros de moliço que ia buscar à água dia e noite.
Ao despontar de uma terceira geração, dispunha já o deserto de pouca areia branca para semear sobre o terreno escurecido que o gafanhão adubava teimosamente. Nas encostas das dunas interiores, mais selvagens, começava o pinheiral a segurar com raízame o terreno esfarelado. E à beira da água, na areia escura, o húmus e as raízes dos feijoeiros fixavam o perfil de um solo que principiava a render-se.
(Continua).

Texto retirado do Arquivo do Distrito de Aveiro – Volume IX de 1943, de Joaquim Matias.

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