sábado, 19 de dezembro de 2009

O linguajar dos gafanhões (parte V)

E este quadro do Padre Resende, duma riqueza tão ingénua, quanto encantadora, em que dois irmãos falam de uma irmã e do seu namorado. Ouçamo-los, sem tradução, para não perturbar a poesia:
“ — Atão Manele, a nocha M’ria deu-t’oje um quinau, hein?! ... Olha qu’ela quer butar fegura ó pé do Zé B’china, que acolá arranca mulicho como moiro. Cando anda consumida câ bida nem ‘scansa.
— Olha cá, F’cico, a nocha quechopa, nu é p’rá gabar, mas val’ mais có Zé B’china, o namurado. Ó pé dele anda sempre toda concha!
Em dois tempos chegó dia grande. Ouvi-les umas palavrinhas! ... No dia da festa da Chanta, verás que ‘tão casadinhos!...
— Chá me dixeram co sôr Prior deu os banhos na nossa ingreja de Bagos.
— E tamém ela deu ali um banho na auga do rio!
— Nu sê. Ela é uma medalha de rapariga. Olha cá, a cachopa val canto pesa. Nu é só pr’àpanhar mulicho. Nas rasgatas do rio é uma bardasca!
— Canté! Nas rasgatas de num passado (ano passado) foi à pincha e ganhou o primeiro prémio. Inté os fidalgotes lhe catrapiscavam os olhos c’mós namurados. E olha qu’ela não dizia que não!
— Poi xim; mas ela não acardita nesses pardalões que nu vesam chêta e que a criam p’ra...
— Ai! Caredo! ... Mais balia a morte que tal sorte. Ó menos c’o Zé B’china nu há selistro; trabalha muito e é um poipadão. E p’ra cantar ó devino ou na ingreja tem falas como um canairo.
— É certo. E a cantar o “sacerdote” antes do sôr padre ir pr’ó altar! A fala dela parece um orgu.
— Que raça! Aqui pr’à gente: o sôr pai e a sâr mãe ‘stão como três num sapato coa quechopa.
— Nam qu’ela é um inzemplo de lindeza. Ali a Filha do Toino Maluco num tem charavelha nenhuma.
— Essa parece um cadable a andar. Não tem lastro nem tri-ló-lé nenhum.
— E onte, a mazona, apanhou uma ralhada da mãe que a pôs à curta. Até me faz desperar tanta ruindade.
— Prontos. Deixemos o barco inté amanhê, c’a mãe ´stá à ‘spera.”
E por aqui ficamos que decerto também estão à espera que terminemos. Não sem antes, porém, deixarmos aqui o desafio ao Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré e a quantos se interessam por estas coisas do nosso passado, afinal tão rico, para que o façam reviver através de estudos que nos permitam quadros para mostrar às actuais gerações da nossa terra e não só. Portugal inteiro (e por que não dizê-lo?) e a civilização de que somos parte integrante também têm o direito de conhecer o nosso riquíssimo passado etnográfico. E dizemos riquíssimo porque foi mesclado por culturas populares diversas que lhe emprestaram um sabor distinto que urge divulgar com coragem e tenacidade.
E aqui cabe bem uma palavra muito especial aos inúmeros licenciados em Português da nossa terra, no sentido de se debruçarem com entusiasmo sobre esta ciência da descoberta do passado de um povo, tornando visível às gentes de hoje os alicerces da maneira de ser, estar e falar dos gafanhões, vivam eles em qualquer das Gafanhas, mas perfeitamente identificados por um passado comum.
No meio da vida, quantas vezes sem sentido, de tantas pessoas, adultas e jovens, todos aqui temos um manancial de temas escondidos em arcas e sótãos, mas também na memória de muitos dos nossos avós, para escoldrinharmos e trazermos à luz do dia, que o mesmo é dizer, à cultura dos tempos de hoje, que são os nossos tempos. E porque o futuro se constrói com exemplos e achegas do passado e do presente, resta-nos esperar que, deste colóquio, saiam entusiasmos por esta riqueza que é pertença dos presentes, se não for esquecida, mas que queremos constituam o orgulho dos que vierem depois de nós. É por isso que aqui estamos.
FIM
Artigo da autoria do Prof. Fernando Martins e publicado no Livro do XV Festival, realizado em 10 de Julho de 1999.

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