quarta-feira, 10 de março de 2010

A Sarr’á Velha

Este tempo de Quaresma é cheio de tradições e simbolismos. Vamos ver o que nos diz a Sr.ª Professora Maria Teresa Reigota, no Seu livro “Gafanha…o que ainda vi, ouvi e recordo”, sobre a tradição da Sarr’á Velha

Era uma tradição que acontecia na noite que marcava o meio da Quaresma.
Com este uso, pretendia-se desafogar um pouco das normas rígidas de preparação para a Páscoa – o jejum, a abstinência de carne, mas acima de tudo, a abstinência de certos prazeres como os bailaricos ou outros folguedos.
Nessa noite de quarta-feira, os moços da Gafanha nos diversos lugares ou aglomerados, juntavam-se e iam “sarrar a belha”.
Uns muniam-se de um ou mais alcatruzes velhos dos engenhos dos poços de rega e metiam uma corrente de bicicleta no orifício do fundo, puxando para um lado e, para o outro, fazendo um barulho ensurdecedor à porta da velha que tinham sob mira. Outros, tal como faziam seus antepassados, talhavam num pau, uns dentes como se fosse uma serra e ao passarem na janela da dita velha escolhida por eles, passavam essa espécie de serra no parapeito. Fazia também muito barulho, embora menos intenso. Corriam toda a localidade, mas apenas importunavam as velhas que eles tinham escolhido.
Diziam à porta de cada uma:
“Ó belha, ó belha
‘stás im tempo d’andar
Desta noite no’scapas
Biemos pra te sarrar”
Claro que algumas velhinhas não se zangavam, pois era tradição, era uso e costume transmitido de geração em geração. Mas outras era “um Deus nos acuda”, respondendo aos moços, lá dentro da sua casa, com os mais diversos palavrões e impropérios. Por vezes, abrindo discretamente uma janela ou uma porta arremessavam sobre eles um balde de sugo do gado ou o penico cheio de urina.
Lembro-me que a uma tia minha, que hoje teria cento e dez anos, pois nasceu em 19 de Março de 1898, amarravam-lhe uma caneca de esmalte já velha, na aldraba do portão do pátio. Escondidos, em frente da casa num pequeno declive que ali existia, puxavam a caneca por um fio que lhe tinham atado. Evidentemente, a caneca fazia um barulho grande. Ela, lá de dentro, ralhou, barafustou, chamou aos moços os nomes feios todos, enfim, um nunca mais acabar de palavreado menos próprio. Mas eles cantaram-lhe a cantiga atrás escrita.
Aí foi o caos – apesar de não ser nova, estar viúva, não ter filhos e viver sozinha, saiu-lhes à rua de cajado em punho e, foita e valente como sempre fora, correu-os dizendo:
“-Ah, seus isto, seus aquilo, quereis qu’eu morra, há-dem morrer vocêzes primeiro e eu ajudo a interrá-los e ópois salto em riba da coba, prá terra bos pesar mais.”
É claro que os moços fugiram, porque na verdade, com essa minha tia não se brincava.
Mas a rapaziada, apesar desta troca de paleio menos próprio, da baldada de sugo ou urina e até do ameaço do cajado, não desanimava e prosseguia em silêncio até à porta doutra velhota que tinham em mira, e recomeçavam o mesmo ritual.
Esta tradição foi-se perdendo e a juventude começou a ir ao “baile da Micaréme”, que se fazia, como o nome afrancesado indica, também a meio do período da quaresma, na próxima vila de Ílhavo, hoje cidade.

Como vemos, a época da Quaresma é cheia de tradições e simbolismos que encheram de alegria os nossos antepassados e que nos fazem divertir hoje quando os lemos.
Boas leituras
Rubem da Rocha

Sem comentários:

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails